Sou mais um a fazer o elogio de Júlio Resende. Será um pianista? Parece não só chegar mais longe como, não sei como, partir de mais perto do que os pianistas sem ponto de interrogação.
Só os grandes pianistas conseguem fazer esquecer o instrumento, suspendendo-o em música pura. Júlio Resende conseguiu apanhar não só o fado e o fado da Amália como a própria Amália a cantar. Também Amália tocava muito mais do que o fado.
Quando se tem tanta lata como Júlio Resende é preciso muito talento e muita inconsciência. A inconsciência é a coragem dos sobredotados: é tal o entusiasmo de fazer o inadmissível que não resta lugar para o medo.
Claro que Júlio Resende não é a Amália em piano. A Amália em piano é uma coisa que não existe. O que ele faz é levar a Amália que traz dentro dele cá para fora, para o meio da gente, onde chega como música diferente que faz lembrar o prazer e a dor de ouvir Amália a cantar.
Quando toca Júlio Resende não vai buscar nada à Amália, ao fado ou à música. Tudo isso já lá está dentro dele, sentido e desejado como só ele consegue. Não existem, milagrosamente, quaisquer escrúpulos estéticos ou cuidados de manutenção de fronteiras entre formas de música. Não há nem o vício estéril do purismo nem a promiscuidade dengosa da fusão. Não há homenagem.
A música de Júlio Resende é um nascimento. Conhecemos os pais e a família mas sabemos já que não vai sair a ninguém. É aquilo com que se sonha sempre: uma música nova de uma só pessoa.
In publico.pt